terça-feira, 24 de janeiro de 2012

So Hush, Little Baby, Don´t You Cry


Na última sexta-feira, eu e o Luís tivemos a graça de poder assistir Porgy & Bess, a "folk-opera" famosíssima de George Gershwin.

Depois de muitos e muitos anos, a obra-prima do compositor americano voltou a ser encenada na Broadway e, por um acaso feliz do destino, nós estávamos aqui para conferir.

A montagem atual traz a diva Audra McDonald (ganhadora de quatro Tonnys, o "Oscar" do teatro americano) no papel de Bess, naquele que a crítica considera o melhor momento da sua carreira, além da performance arrasadora de Norm Lewis como Porgy. Sem falar no restante do elenco, afiadíssimo.

Para quem não conhece a história, trata-se de uma improvável relação de amor entre uma prostituta viciada em cocaína (Bess) e um mendigo aleijado (Porgy), atormentados pelo cafetão de Bess, o violento Crown, e o traficante de drogas Sportin´Life. Toda a ação se passa na fictícia comunidade de pescadores negros de Catfish Row, em Charlestown, no sul dos Estados Unidos na década de 20.

A miséria reina absoluta entre os moradores. Miséria física e miséria moral. Durante quase três horas o que se assiste é um desenrolar impressionante de clássicos do jazz e do blues além de dor, muita dor, no cotidiano das personagens.

Gershwin, um alvo judeu americano (e, dizem, gay de carteirinha) consegue, com habilidade ímpar, trazer à cena todos os detalhes da questão racial estadunidense do primeiro terço do século passado. A pobreza, a violência e a segregação estão no palco, em estado bruto, sem nenhuma tentativa de edulcorar esses aspectos. Ao contrário, a peça choca pela crueza.

De início, logo após a estréia no final dos anos 30, criador e criatura enfrentaram forte resistência do público e da crítica. Essa que talvez seja a maior obra musical já produzida por um compositor americano levou anos para ser reconhecida como tal. Gershwin tomou ripada de todo lado. Dos brancos por acharem que preto não podia ser tema de uma peça musical clássica (mesmo que popular) e dos pretos, por acreditarem que Porgy & Bess era racista, por "reforçar" uma imagem negativa do povo negro americano.

Vale lembrar que na mesma época Billie Holiday já cambaleava louca de heroína pelos bares do Bronx e negros eram mortos sem maior cerimônia pela Ku-Klux-Klan. Logo, o máximo de que se pode acusar Gershwin, é por realismo, não por preconceito.

Para mim, longe de ser racista, a peça foi, na verdade, revolucionária por trazer à tona ao grande público, de maneira crítica e pela primeira vez, a dura realidade em que a imensa maioria dos negros americanos vivia na época - e continuaria a viver pelo menos até os anos 50, com o movimento pelos direitos civis iniciado pelos Panteras Negras e a ascensão política de Martin Luther King Jr.

Mais do que isso, por tratar de temas profundamente humanos - amor e ódio, dor e prazer, perdão e vingança, vida e morte, tudo embalado pela genialidade musical do autor - a peça nos leva a uma irresistível empatia com os personagens. E não deve ter sido fácil para a elite branca da época sentir qualquer outra coisa, além dos costumeiros indiferença ou ódio, pelos pobres e pretos que dominam a cena.

Gershwin foi atacado também por uma alegada "higienização" da música negra americana, entenda-se, o jazz e o blues. Por essa razão, entre outros, Duke Ellington xoxou a obra e seu autor, só revendo sua posição vinte anos mais tarde, na década de 50, quando grandes mestres do jazz - como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Billie Holiday e Nina Simone - já haviam percebido a riqueza das melodias da peça e cravavam clássicos atrás de clássicos pescados em Porgy & Bess. Só prá citar alguns, estão lá "Summertime", "Bess, You Is My Woman Now", "I Loves You, Porgy",  "I Got Plenty 'o Nuttin" e "It Ain´t Necessarely So".

Por falar em "Summertime", é essa pérola que abre o espetáculo, assim, de primeira. A música é um lullaby, uma canção de ninar, entoada por uma negra da comunidade de Catfish Row que, desesperada por ver seu filhinho chorando de fome e frio e sem ter o que fazer para mitigar seu sofrimento, canta docemente para acalmá-lo, criando, na música, uma realidade fantasiosa onde tudo é belo e fácil, e um futuro sorridente aguarda a todos. Talvez uma das mais tocantes cenas já produzidas por uma canção em todos os tempos. De partir o coração.

Depois disso, é segurar firme nos braços da poltrona e aguardar o que vem pela frente - e vem muita coisa... A biba-judia era, definitivamente, um gênio!

Como são gênios esses dois monstros da canção americana - Ella Fitzgerald e Louis Armstrong - que deixo abaixo, na minha opinião, em uma das mais sublimes interpretações dessa jóia que é "Summertime". Desfrutem!




Este post vai com carinho para o Walter, a Mama, que me apresentou Gershwin e Ella Fitzgerald, quando eu era pouco mais do que um viadinho pós-adolescente new-wave que achava que a história da música tinha começado com Devo e B-52´s. Ele esteve comigo na Broadway, guardado no meu coração. Saudade e gratidão eternas.

E.T.: Eu continuo adorando Devo e B-52´s...  ;o)